Charge e caricatura
O humor visual é um
relevante meio de observar a realidade. Assim, a charge e a caricatura têm
papel fundamental e decisivo no espaço jornalístico. Não têm a precisão e o
detalhamento da reportagem e muito menos do ensaio das ciências sociais, mas atingem
o leitor com rapidez e agudeza. Podem ter impacto comparável ao de um bom artigo
e, em geral, podem ser transmissoras da voz da opinião pública.
Ambas são importantes
instrumentos de expressão cultural e de pensamentos. Ridicularizam o
comportamento político dos “donos do poder” ou de outros segmentos sociais e
remetem a um conjunto de informações da dimensão da cultura popular e de massa.
Envolvem os leitores em um processo lúdico e os instiga a observar com outro olhar
seu cotidiano, sempre com algum acréscimo.
A charge e a caricatura
oferecem a possibilidade de analisar a história social, política, artística
etc.
O Dicionário Aurélio (FERREIRA, 1995, p. 130 e
145) contém as seguintes definições: “Caricatura. S. f. Desenho que, pelo
traço, pela escolha dos detalhes, acentua ou revela aspectos caricatos de
pessoa ou fato. Charge. S. f. Representação
pictórica, de caráter burlesco e caricatural, em que se satiriza um fato
específico, em geral de caráter político e que é do conhecimento público”.
Uma importante
contribuição para o estudo dessa dimensão lúdica e do riso é a obra Raízes do riso, de Elias Thomé Saliba,
que aborda a representação humorística brasileira durante a belle époque e nos primeiros tempos do
rádio. Segundo o autor, “o humor não é um estado de espírito, mas uma visão de
mundo” (SALIBA, 2002, p. 15).
Como exemplos de trabalho
pedagógico com a caricatura e a charge, são apresentados dois desenhos a
respeito do médico Oswaldo Cruz publicados anos antes da Revolta da Vacina, no Rio
de Janeiro, em 1910.
Guilherme Tela de Arame – O mais extraordinário
caçador de... Mosquitos. (J. Carlos, Tagarela, 12 mar. 1904. Ver FALCÃO, 1972,
p. lxviii).
A varíola e a vacina. Oswaldo Cruz:
Retira-te, em nome da ciência! Varíola: Que ciência! A de Jenner? Conheço-a há
85 anos e ainda anda de carro de boi no Brasil, ao passo que eu já ando de
automóvel!... Cresça e apareça! (O Malho, 1o
fev. 1908. Ver FALC ÃO, 1972, p. ccvi. Citado
por LOPES, 1999).
Onde está o humor nessas
imagens? Conseguimos rir com o que representam? Para o historiador Robert Darton
(1986, p. XV), “quando não conseguimos
entender um provérbio, uma piada, um ritual ou um poema,
temos a certeza de que
encontramos algo. Analisando o documento onde ele é mais opaco, talvez se
consiga descobrir um sistema de significados estranhos. O fio pode até conduzir
a uma pitoresca e maravilhosa visão de mundo”.
Que visão de mundo essas
imagens transmitem ao leitor? É difícil interpretar caricaturas e charges do
passado, pelo fato de o leitor pertencer a outro tempo e não necessariamente conhecer
os personagens retratados. Para identificar o humor nessas imagens, é preciso
saber quem eram eles, dominar informações
históricas e reconhecer
quais foram as intervenções dos humoristas. Na caricatura, por exemplo, uma vez
que são os exageros que provocam o riso, o leitor precisa identificar qual era
a referência social ou política do personagem no passado, para entender o que o
humorista salientou em seu desenho. Como afirma Bakhtin (1987, p. 18), “o riso
degrada e materializa”.
A idéia da degradação é interpretada
por Bakhtin como valor positivo, porque possibilita renovar a imagem, criar um
novo sentido – provoca uma leitura mais livre dos valores determinados socialmente,
sem deixar de fazer referência a eles.
O riso só aflora se o
leitor do presente reconhecer na caricatura a dimensão material, humanizada, degradada,
construída para ela.
Para a leitura de
caricaturas no trabalho com os estudantes, sugere-se, inicialmente, sondar se
sabem o que são e/ou se costumam lidar com elas. Por exemplo, apresentar uma
caricatura e questionar: o que vocês estão vendo? Isso é um retrato ou não? Se não
é um retrato, que tipo de desenho é esse?
Depois de chamar a
atenção para o tipo de desenho, é interessante mostrar a eles outras
caricaturas, principalmente de pessoas que possam reconhecer (político, jogador
de futebol, ator famoso), perguntando o que os desenhos têm de semelhante com o
primeiro. A idéia, aqui, é explorar as características do desenho de
caricatura, salientando os exageros.
No caso específico da primeira
imagem, é possível fazer perguntas diretas: quem é essa pessoa? Por que a
cabeça está maior do que o corpo? Podemos descobrir alguma informação com uma
legenda? Qual seria a legenda desse desenho? Apresentar a legenda e ler com os
alunos – “Guilherme Tela de Arame. O mais extraordinário caçador de...
Mosquitos” – e questionar: será que o nome da pessoa retratada é esse
“Guilherme Tela de Arame”? Por quê? Vocês já ouviram falar em Guilherme Tell?
Sabem quem foi? Esse é um desenho dele ou não?
Para dar continuidade ao
trabalho, pode-se ainda levar uma enciclopédia para a sala de aula para que os
alunos conheçam quem foi Guilherme Tell e, depois, perguntar-lhes se, pela
biografia, a caricatura está se referindo a ele ou não. Discutir, então, que
não se trata de Guilherme Tell e questionar por que, na legenda, o nome dele
foi modificado para “Tela de Arame” e por que virou caçador de mosquitos. Nessa
linha, muitas observações e hipóteses podem ser provocadas: quem será que caça
mosquitos? O que a pessoa do desenho está fazendo? Como está vestida? Qual a
profissão dela? Ela é de outra época? Como podemos descobrir quem é e qual sua
época?
Os questionamentos
instigam pesquisas, que podem ser feitas no próprio livro didático, tomando
como referência a data da caricatura (1904): o que estava acontecendo no Brasil
no contexto daquela época?
No livro didático, é
possível obter informações sobre Oswaldo Cruz e a Revolta da Vacina. Nesse
caso, o objetivo é ler um texto para entender uma imagem. E, aí, já com os dados
da época, o debate pode girar em torno das intenções do autor da caricatura: por
que o desenhista fez uma caricatura de Oswaldo Cruz? Como provocou, com ela, o riso
nos leitores de 1904? O que ele quis dizer? Por que colocou aquela legenda?
Quem
eram as pessoas leitoras
desse desenho? Quando elas o observaram, o que entenderam, pensaram,
imaginaram? E o que podemos pensar hoje em dia vendo a caricatura? Entendemos o
riso que ela queria despertar quando foi feita? Esse é um documento histórico?
Por quê?
No desenvolvimento do
trabalho, sugere-se confrontar as especulações e hipóteses dos alunos com o
texto da autora que estudou essa caricatura:
“J. Carlos criou o
personagem ‘Guilherme Tela de Arame’, cujo nome nos envia a três referências
distintas: a palavra ‘Tela’, aos mosquiteiros; ‘de Arame’, a uma gíria do português
que significa dinheiro; e à maleabilidade do arame em analogia ao bigode bem
penteado do dr. Oswaldo Cruz.
A justaposição desses
dois personagens faz-se perceptível em três níveis. O primeiro nível diz
respeito à sonoridade do nome do personagem histórico, ‘Guilherme Tell’. J.
Carlos constrói um trocadilho batizando o dr. Oswaldo Cruz de Guilherme Tela, relacionando
o nome ‘Tela’ à escolha de um aspecto constitutivo do personagem a ser trabalhado
– uma especialidade dos caricaturistas – que, no caso do dr. Oswaldo Cruz, é um
elemento do seu rosto, o bigode, denominado de arame. Dessa forma, chegamos à
composição da alcunha ‘Guilherme Tela de Arame’. O segundo nível concerne à
característica de caçador, atribuída ao representado. O caçador é o homem que
dissimula sua presença até o momento em que esteja pronto para abater a caça.
Ele deve confundir-se com a paisagem a sua volta. As caricaturas da época
exploravam as cenas em que o dr. Oswaldo Cruz e sua brigada iam à caça dos
ratos e dos mosquitos, os causadores da peste e da febre amarela,
respectivamente. Os desenhistas provocam o riso dos leitores com a encenação do
pânico
em face dos pequenos
animais. Os caricaturistas exploram o contraste. De um lado, a pequenez dos
agentes causadores das doenças e, de outro, a grande quantidade de dinheiro
dispensada e o dispositivo logístico erguido para combatê-los. Um fuzil de caça
traçado no desenho, mais um ponto de suspensão (sinal de pontuação indicado por
três pontos) após a palavra ‘caçador’, induz o leitor à ironia intencional da
mensagem. O terceiro nível situa-se no elemento cruz, símbolo que, por sua vez,
nos envia a outras três referências. De imediato, o associamos ao país de
origem de Guilherme Tell: a cruz figura nas armas suíças e simboliza a Cruz
Vermelha Internacional, instituição que se origina em Genebra, em 1864. Em
segundo plano, traçando uma referência mais abrangente, a cruz é o emblema da
saúde, que aparece também nos capacetes da brigada sanitária do dr. Oswaldo
Cruz. Na caricatura, a cruz surge por todos os lados: no traje, no boné, no
colete, no tórax e na cintura de Guilherme Tela de Arame” (LOPES, 1999).
Nesse exercício de
interpretação, é importante não esquecer a dimensão política da caricatura, já
que o personagem representa uma ação do Estado brasileiro no combate à varíola,
que se confronta com o universo cultural da população.
Como desdobramento da
leitura da caricatura, é possível elaborar textos com os estudantes a respeito
do que é uma caricatura, como interpretar caricaturas de outras épocas, o que
nelas provocam o riso, como interpretar especificamente a caricatura de Oswaldo
Cruz e se as caricaturas permitem estudar o passado.
Para a leitura da charge
(segunda imagem), podem ser realizados questionamentos semelhantes, que
instiguem os estudantes a expor seus conhecimentos prévios sobre as charges, a
observar e colher informações diretamente da imagem e depois confrontar suas
hipóteses com outras fontes de informação. Sugere-se, por exemplo, que sejam discutidas
as características das charges, qual a intenção dos autores ao criá-las, como é
importante procurar informações sobre a autoria e a época para o entendimento
do “riso” proposto.
No caso da segunda
imagem, é interessante abordar a relação entre o título e o desenho, como a
leitura da legenda ajuda a desvendar os personagens, como a varíola e Oswaldo
Cruz estão representados, por que Oswaldo Cruz aparece menor que a varíola, assim
como pesquisar sobre a varíola, epidemias da doença no Brasil, a medicina na
época etc. No final, é importante recuperar a questão do riso e as razões que
dificultam
nosso entendimento rápido
do humor de outra época.
Referencial de expectativas para o
desenvolvimento da competência leitora e escritora: caderno de orientação
didática de História / Secretaria Municipal de Educação – São Paulo: SME / DOT,
2006.