quinta-feira, 4 de outubro de 2012


Charge e caricatura
O humor visual é um relevante meio de observar a realidade. Assim, a charge e a caricatura têm papel fundamental e decisivo no espaço jornalístico. Não têm a precisão e o detalhamento da reportagem e muito menos do ensaio das ciências sociais, mas atingem o leitor com rapidez e agudeza. Podem ter impacto comparável ao de um bom artigo e, em geral, podem ser transmissoras da voz da opinião pública.
Ambas são importantes instrumentos de expressão cultural e de pensamentos. Ridicularizam o comportamento político dos “donos do poder” ou de outros segmentos sociais e remetem a um conjunto de informações da dimensão da cultura popular e de massa. Envolvem os leitores em um processo lúdico e os instiga a observar com outro olhar seu cotidiano, sempre com algum acréscimo.
A charge e a caricatura oferecem a possibilidade de analisar a história social, política, artística etc.
O Dicionário Aurélio (FERREIRA, 1995, p. 130 e 145) contém as seguintes definições: Caricatura. S. f. Desenho que, pelo traço, pela escolha dos detalhes, acentua ou revela aspectos caricatos de pessoa ou fato. Charge. S. f. Representação pictórica, de caráter burlesco e caricatural, em que se satiriza um fato específico, em geral de caráter político e que é do conhecimento público”.
Uma importante contribuição para o estudo dessa dimensão lúdica e do riso é a obra Raízes do riso, de Elias Thomé Saliba, que aborda a representação humorística brasileira durante a belle époque e nos primeiros tempos do rádio. Segundo o autor, “o humor não é um estado de espírito, mas uma visão de mundo” (SALIBA, 2002, p. 15).
Como exemplos de trabalho pedagógico com a caricatura e a charge, são apresentados dois desenhos a respeito do médico Oswaldo Cruz publicados anos antes da Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, em 1910.

Guilherme Tela de Arame – O mais extraordinário caçador de... Mosquitos. (J. Carlos, Tagarela, 12 mar. 1904. Ver FALCÃO, 1972, p. lxviii).


A varíola e a vacina. Oswaldo Cruz: Retira-te, em nome da ciência! Varíola: Que ciência! A de Jenner? Conheço-a há 85 anos e ainda anda de carro de boi no Brasil, ao passo que eu já ando de automóvel!... Cresça e apareça! (O Malho, 1o fev. 1908. Ver FALC ÃO, 1972, p. ccvi. Citado por LOPES, 1999).

Onde está o humor nessas imagens? Conseguimos rir com o que representam? Para o historiador Robert Darton (1986, p. XV), “quando não conseguimos entender um provérbio, uma piada, um ritual ou um poema,
temos a certeza de que encontramos algo. Analisando o documento onde ele é mais opaco, talvez se consiga descobrir um sistema de significados estranhos. O fio pode até conduzir a uma pitoresca e maravilhosa visão de mundo”.
Que visão de mundo essas imagens transmitem ao leitor? É difícil interpretar caricaturas e charges do passado, pelo fato de o leitor pertencer a outro tempo e não necessariamente conhecer os personagens retratados. Para identificar o humor nessas imagens, é preciso saber quem eram eles, dominar informações
históricas e reconhecer quais foram as intervenções dos humoristas. Na caricatura, por exemplo, uma vez que são os exageros que provocam o riso, o leitor precisa identificar qual era a referência social ou política do personagem no passado, para entender o que o humorista salientou em seu desenho. Como afirma Bakhtin (1987, p. 18), “o riso degrada e materializa”.
A idéia da degradação é interpretada por Bakhtin como valor positivo, porque possibilita renovar a imagem, criar um novo sentido – provoca uma leitura mais livre dos valores determinados socialmente, sem deixar de fazer referência a eles.
O riso só aflora se o leitor do presente reconhecer na caricatura a dimensão material, humanizada, degradada, construída para ela.
Para a leitura de caricaturas no trabalho com os estudantes, sugere-se, inicialmente, sondar se sabem o que são e/ou se costumam lidar com elas. Por exemplo, apresentar uma caricatura e questionar: o que vocês estão vendo? Isso é um retrato ou não? Se não é um retrato, que tipo de desenho é esse?
Depois de chamar a atenção para o tipo de desenho, é interessante mostrar a eles outras caricaturas, principalmente de pessoas que possam reconhecer (político, jogador de futebol, ator famoso), perguntando o que os desenhos têm de semelhante com o primeiro. A idéia, aqui, é explorar as características do desenho de caricatura, salientando os exageros.
No caso específico da primeira imagem, é possível fazer perguntas diretas: quem é essa pessoa? Por que a cabeça está maior do que o corpo? Podemos descobrir alguma informação com uma legenda? Qual seria a legenda desse desenho? Apresentar a legenda e ler com os alunos – “Guilherme Tela de Arame. O mais extraordinário caçador de... Mosquitos” – e questionar: será que o nome da pessoa retratada é esse “Guilherme Tela de Arame”? Por quê? Vocês já ouviram falar em Guilherme Tell? Sabem quem foi? Esse é um desenho dele ou não?
Para dar continuidade ao trabalho, pode-se ainda levar uma enciclopédia para a sala de aula para que os alunos conheçam quem foi Guilherme Tell e, depois, perguntar-lhes se, pela biografia, a caricatura está se referindo a ele ou não. Discutir, então, que não se trata de Guilherme Tell e questionar por que, na legenda, o nome dele foi modificado para “Tela de Arame” e por que virou caçador de mosquitos. Nessa linha, muitas observações e hipóteses podem ser provocadas: quem será que caça mosquitos? O que a pessoa do desenho está fazendo? Como está vestida? Qual a profissão dela? Ela é de outra época? Como podemos descobrir quem é e qual sua época?
Os questionamentos instigam pesquisas, que podem ser feitas no próprio livro didático, tomando como referência a data da caricatura (1904): o que estava acontecendo no Brasil no contexto daquela época?
No livro didático, é possível obter informações sobre Oswaldo Cruz e a Revolta da Vacina. Nesse caso, o objetivo é ler um texto para entender uma imagem. E, aí, já com os dados da época, o debate pode girar em torno das intenções do autor da caricatura: por que o desenhista fez uma caricatura de Oswaldo Cruz? Como provocou, com ela, o riso nos leitores de 1904? O que ele quis dizer? Por que colocou aquela legenda? Quem
eram as pessoas leitoras desse desenho? Quando elas o observaram, o que entenderam, pensaram, imaginaram? E o que podemos pensar hoje em dia vendo a caricatura? Entendemos o riso que ela queria despertar quando foi feita? Esse é um documento histórico? Por quê?
No desenvolvimento do trabalho, sugere-se confrontar as especulações e hipóteses dos alunos com o texto da autora que estudou essa caricatura:
“J. Carlos criou o personagem ‘Guilherme Tela de Arame’, cujo nome nos envia a três referências distintas: a palavra ‘Tela’, aos mosquiteiros; ‘de Arame’, a uma gíria do português que significa dinheiro; e à maleabilidade do arame em analogia ao bigode bem penteado do dr. Oswaldo Cruz.
A justaposição desses dois personagens faz-se perceptível em três níveis. O primeiro nível diz respeito à sonoridade do nome do personagem histórico, ‘Guilherme Tell’. J. Carlos constrói um trocadilho batizando o dr. Oswaldo Cruz de Guilherme Tela, relacionando o nome ‘Tela’ à escolha de um aspecto constitutivo do personagem a ser trabalhado – uma especialidade dos caricaturistas – que, no caso do dr. Oswaldo Cruz, é um elemento do seu rosto, o bigode, denominado de arame. Dessa forma, chegamos à composição da alcunha ‘Guilherme Tela de Arame’. O segundo nível concerne à característica de caçador, atribuída ao representado. O caçador é o homem que dissimula sua presença até o momento em que esteja pronto para abater a caça. Ele deve confundir-se com a paisagem a sua volta. As caricaturas da época exploravam as cenas em que o dr. Oswaldo Cruz e sua brigada iam à caça dos ratos e dos mosquitos, os causadores da peste e da febre amarela, respectivamente. Os desenhistas provocam o riso dos leitores com a encenação do pânico
em face dos pequenos animais. Os caricaturistas exploram o contraste. De um lado, a pequenez dos agentes causadores das doenças e, de outro, a grande quantidade de dinheiro dispensada e o dispositivo logístico erguido para combatê-los. Um fuzil de caça traçado no desenho, mais um ponto de suspensão (sinal de pontuação indicado por três pontos) após a palavra ‘caçador’, induz o leitor à ironia intencional da mensagem. O terceiro nível situa-se no elemento cruz, símbolo que, por sua vez, nos envia a outras três referências. De imediato, o associamos ao país de origem de Guilherme Tell: a cruz figura nas armas suíças e simboliza a Cruz Vermelha Internacional, instituição que se origina em Genebra, em 1864. Em segundo plano, traçando uma referência mais abrangente, a cruz é o emblema da saúde, que aparece também nos capacetes da brigada sanitária do dr. Oswaldo Cruz. Na caricatura, a cruz surge por todos os lados: no traje, no boné, no colete, no tórax e na cintura de Guilherme Tela de Arame” (LOPES, 1999).
Nesse exercício de interpretação, é importante não esquecer a dimensão política da caricatura, já que o personagem representa uma ação do Estado brasileiro no combate à varíola, que se confronta com o universo cultural da população.
Como desdobramento da leitura da caricatura, é possível elaborar textos com os estudantes a respeito do que é uma caricatura, como interpretar caricaturas de outras épocas, o que nelas provocam o riso, como interpretar especificamente a caricatura de Oswaldo Cruz e se as caricaturas permitem estudar o passado.
Para a leitura da charge (segunda imagem), podem ser realizados questionamentos semelhantes, que instiguem os estudantes a expor seus conhecimentos prévios sobre as charges, a observar e colher informações diretamente da imagem e depois confrontar suas hipóteses com outras fontes de informação. Sugere-se, por exemplo, que sejam discutidas as características das charges, qual a intenção dos autores ao criá-las, como é importante procurar informações sobre a autoria e a época para o entendimento do “riso” proposto.
No caso da segunda imagem, é interessante abordar a relação entre o título e o desenho, como a leitura da legenda ajuda a desvendar os personagens, como a varíola e Oswaldo Cruz estão representados, por que Oswaldo Cruz aparece menor que a varíola, assim como pesquisar sobre a varíola, epidemias da doença no Brasil, a medicina na época etc. No final, é importante recuperar a questão do riso e as razões que dificultam
nosso entendimento rápido do humor de outra época.




Referencial de expectativas para o desenvolvimento da competência leitora e escritora: caderno de orientação didática de História / Secretaria Municipal de Educação – São Paulo: SME / DOT, 2006.

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