Crônica
O que é uma crônica? Qual a relação entre crônica e
história? Como trabalhar especificamente com crônicas
nas aulas de História? Quem são alguns cronistas brasileiros?
A crônica é um tipo de texto encontrado com frequência em jornais e revistas e
sua característica é focar acontecimentos vividos cotidianamente por meio de um
texto livre, literário, autoral. Em geral, o cronista fala da vida diária, mas
pode abordar também assuntos políticos, existenciais e esportivos.
A crônica diferencia-se da notícia e da reportagem, cujo
modelo tende a impor uma impessoalidade e uma
objetividade, porque o autor escreve livremente, avaliando,
confrontando, mesclando ficção e realidade, apresentando suas impressões dos
acontecimentos. É um texto literário, mas, quando publicada em jornal, pode
assumir uma dimensão efêmera, como as reportagens, que em geral deixam de ter
interesse no dia seguinte. No entanto, essa característica faz com que a
crônica contemple de maneira mais explícita elementos de sua historicidade,
contribuindo para os estudos de contextos históricos, pois registra os hábitos,
as ações e as idéias do cotidiano. As crônicas têm sido amplamente utilizadas
na escola e muitas delas estão presentes nos materiais didáticos de História.
Assim, esse é um gênero de texto conhecido por professores e alunos. No Brasil,
são muitos os cronistas que legaram textos favoráveis ao estudo nas aulas de
História: José de Alencar, Machado de Assis, Lima Barreto, Olavo Bilac,
Graciliano Ramos, Alcântara Machado, Rachel de Queiroz, Clarice Lispector,
Sérgio Faraco, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Mario Prata, Carlos Heitor
Cony, entre outros. Qual outro cronista você conhece? Vejamos uma crônica de
Lima Barreto (1956), publicada pela primeira vez na revista Careta, em
26 de junho de 1915.
“Ontem e hoje
Como todo o Rio de Janeiro sabe, o seu centro social foi
deslocado da rua do Ouvidor para a avenida e, nesta, ele fica exatamente no
ponto dos bondes do Jardim Botânico. Lá se reúne tudo o que há de mais curioso
na cidade. São as damas elegantes, os moços bonitos, os namoradores, os
amantes, os badauds, os camelots e a semesperança. crescem para dar animação ao local as
cervejarias que há por lá, e um enorme hotel que diz comportar não sei quantos
milheiros de hóspedes. Nele moram vários parlamentares, alguns conhecidos e
muitos desconhecidos. Entre aqueles está um famoso pela virulência dos seus
ataques, pela sua barba nazarena, pelo seu pince-nez e, agora, pelo
luxuoso automóvel, um dos mais chics da cidade. Há cerca de quatro
meses, um observador que lá se postasse veria com espanto o ajuntamento que
causava a entrada e a saída desse parlamentar. De toda a parte, corria gente a
falar com ele, a abraçá-lo, a fazer-lhe festas. Eram homens de todas as
condições, de todas as roupas, de todas as raças. Vinham os encartolados, os
abrilhantados, e também os pobres, os mal vestidos, os necessitados de emprego.
Certa vez a aglomeração de povo foi tal que o guarda civil de ronda compareceu,
mas logo afastou-se dizendo: – É o nosso homem.
Bem, isto é história antiga. Vejamos agora a moderna.
Atualmente, o mesmo observador que lá parar, a fim de guardar fisionomias belas
ou feias, alegres ou tristes e registrar gestos e atitudes, fica surpreendido
com a estranha diferença que há com aspecto da chegada do mesmo deputado. Chega
o seu automóvel, um automóvel de muitos contos de réis, iluminado
eletricamente, motorista de fardeta, todo o veículo reluzente e orgulhoso. O
homem salta. Pára um pouco, olha desconfiado para um lado e para outro, levanta
a cabeça para equilibrar o pince-nez no nariz e segue para a escusa
entrada do hotel. Ninguém lhe fala, ninguém lhe pede nada, ninguém o abraça –
por quê? Por que não mais aquele ajuntamento, aquele fervedouro de gente de há
quatro meses passados? Se ele sai e põe-se no passeio à espera do seu rico
automóvel, fica isolado, sem um admirador ao lado, sem um correligionário, sem
um assecla sequer. Por quê? Não sabemos, mas talvez o guarda civil pudesse dizer:
– Ele não é mais o nosso homem.”
Quem vivia no Rio de Janeiro em 1915 provavelmente
entenderia com certa tranquilidade a crônica de Lima Barreto, que nela
descreveu o cotidiano da cidade e fez comentários a respeito de alguns eventos.
Entretanto, quem vive no século XXI, quase um século depois, precisa conhecer
um pouco da história da antiga capital da República para compreendê-la melhor.
Se, porém, os alunos ainda não estudaram esse tema, como podem entender a
crônica e nela identificar acontecimentos da época? Ou, de outro modo: como
estudar o Rio de Janeiro analisando a crônica de Lima Barreto, ao mesmo tempo
que se apresenta a eles esse gênero de texto?
Para mergulhar no passado, é possível, antes de trabalhar
com a crônica, pesquisar a respeito do autor, do contexto retratado e da
revista Careta e, depois, criar algumas estratégias de leitura
favoráveis para encontrar no próprio texto pistas de seu contexto histórico. A
pesquisa sobre a época revela reformas urbanas no Rio de Janeiro. A cidade foi
reconstruída e “modernizada” no final do século XIX e início do XX, de acordo com
os modelos urbanos europeus, principalmente de Paris. Havia pouco tempo, no Rio
de “ontem” estavam em evidência a pobreza, as ruas estreitas do período
colonial, bairros insalubres, casas de taipa. Com as reformas urbanas, o centro
antigo foi demolido e em seu lugar surgiram novos prédios, a avenida Central e
bulevares. As linhas de bonde começaram a ser implantadas na década de 1890. O
novo estilo da cidade passou a ser acompanhado por outro estilo de vida; as
classes sociais mais pobres foram expulsas dos espaços centrais, enquanto a
“modernidade” ficou reservada para o refinamento carioca. Essas informações
contribuem para revelar, por exemplo, alguns temas históricos na crônica. A
escolha do título fica mais compreensível. Lima Barreto escolheu “Ontem e hoje”
porque, provavelmente, queria se referir às mudanças na cidade. O “ontem” seria
a cidade antiga e pobre; o “hoje”, a cidade nova, moderna e “chic”. No
início do texto, o autor conta que o centro social do Rio de Janeiro foi
deslocado para a “avenida” – supõe-se que seja a avenida Central – e dá a entender
que o ponto dos bondes do Jardim Botânico fazia parte da paisagem resultante
das reformas urbanas. Mas por que a nova avenida atraía as pessoas? Por que o
autor cita as “damas elegantes”, a pessoa “sem-esperança” e, mais adiante,
“homens de todas as condições, de todas as roupas, de todas as raças”, “os
encartolados, os abrilhantados, e também os pobres, os mal vestidos, os
necessitados de emprego”? Será que quer ressaltar a permanência da riqueza e da
pobreza? Fala também de parlamentares morando em hotéis no centro. Isso se
explica pelo fato de o Rio de Janeiro ser, na época, a capital do Brasil e para
lá se dirigirem os políticos de várias regiões. Mas quem era o parlamentar
“famoso pela virulência dos seus ataques, pela sua barba nazarena, pelo seu pince-nez”?
Essa informação demandaria outra pesquisa. O vocabulário é
revelador. Por que tantas palavras em francês na crônica? Foram introduzidas
com as avenidas e alamedas “chics” ou já estavam incorporadas desde o
Império ao vocabulário cotidiano da cidade e, portanto, de
uso freqüente da população e de seus escritores?
O que fica compreensível na crônica é uma cidade nova que
não esconde plenamente a antiga. Apesar das transformações, aos poucos o espaço
público abriga a diversidade. E, na esfera dos hábitos, a população do Rio de
Janeiro, de variada procedência, tinha o costume de agradar e pedir favores aos
políticos de renome, cuja fama, como tudo mais na modernidade, era passageira.
O texto contém pistas para sua compreensão, mas não se
revela plenamente, porque o autor escreveu para seus contemporâneos, que podiam
preenchê-lo com informações de seu dia-a-dia. Para o leitor atual, a uma
distância de cem anos no tempo, cabe o esforço de questionar o texto, inferir,
interpretar, identificar rastros de sua historicidade.
Referencial de expectativas para o
desenvolvimento da competência leitora e escritora: caderno de orientação
didática de História / Secretaria Municipal de Educação – São Paulo: SME / DOT,
2006.
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