segunda-feira, 28 de maio de 2012

Como se não houvesse amanhã – Organizado por Henrique Rodrigues

Como se não houvesse amanhã contém vinte contos inspirados em músicas da Legião Urbana. Assim como a discografia, esse é o livro que trago sempre comigo. Ambos seguem carregados por aí na forma de lembrança, aquela lembrança boa, que faz sentir que não é tudo isso em vão. Como se não houvesse o amanhã serve para tentar entender o embaraço do mundo, confortar com palavras belas e para passar o tempo, feito um sussuro musical. Como se não houvesse o amanhã é luz que deixo acesa, embora eu não tenha medo do escuro.
“A música ainda estava dizendo ‘amor’ quando dona Izaura arrancou o LP do toca-discos”. O primeiro conto é inspirado em Será. Perguntas dentro de perguntas, um gesto quase infantil, porque todo mundo foi criança um dia e crescer parece que ainda é tarefa de toda pessoa já adulta. Um monte de adulto ainda não sabe explicar a grande fúria do mundo ou dizer por que o céu é azul. Arrancar o LP, pausar a música é tão mais mecânico e simples. Mas deixe que a música continue, caro Leitor. E quando Será estiver chegando ao fim, um arrepio inesperado vai percorrer seus braços. Vai surgir uma ansiedade esquisita. Uma ansiedade de colocar o LP de novo no toca-discos, dona Izaura que agüente. Ou você pode pular pro conto Há tempos pra tocar o lado A da fita cassete. Sempre o mesmo lado A. “Sony. Botões de apertar. Legião Urbana. Fita branca. As quatro estações. Am/Fm. Play. Stop. Pause. FF. RW“. Crescer não é fácil de entender. Pais e Filhos, Sagrado Coração, são as músicas e são os contos que ecoam de um jeito fino e doloroso e ao mesmo tempo libertador na alma.
As páginas são cheias de sensibilidade, ainda mais quando se referem ao amor. Sereníssima é aquele conto que está no meu exemplar com as orelhas dobradas, as frases já exaustas de serem relidas. O conto, em nada sereno, narra sobre uma paixão que virou uma gritaria, dor, lágrima. Uma paixão que duvida da sua própria existência no passado. Não foi sustentada por promessa alguma, mas precisa de lembranças para morrer de verdade. Copiar traços do que não aconteceu e rabiscar um horizonte é traição a si mesmo. É sustentar uma ilusão que vai resultar em uma saudade vazia. Não seria importante para essa paixão ter existido se todos aqueles risos, filmes de madrugada e poesia no ouvido não aconteceram de fato.
Ainda é cedo, retrata duas pessoas deitadas na cama, fitando o teto. Cabe o compartilhamento desse momento tão frígido em uma situação que acontece provavelmente após a troca da forma mais veemente de sentimento? Coloque-se no lugar de uma dessas pessoas, de preferência no da mais inerte. E quando a outra pessoa, aquele corpo deitado ao lado do seu, tão exposto e mesmo assim tão recôndito, pergunta, ainda fitando o teto, se você tem medo de amar, você fica em silêncio. E a sensação de ouvir tchau e permanecer quieto, tépido. Você quer esse abandono e nunca quis, a culpa é toda sua e nunca foi. Ainda é cedo é o abandono, é a redenção, é o prenúncio. Você vai pular para o conto Vento no litoral, você vai andar pela praia procurando cavalos marinhos, porque cavalos marinhos possuem um significado tão diferente pra biologia, cuja intenção você transformou em metáfora de valor sentimental, porque aquele é o bicho mais fiel. Agora fica aí, procurando por um deles na praia para se lembrar de um alguém, sentindo o vento bater no seu corpo, perguntando onde esse alguém está além, é claro, de dentro de você. E em Giz, você vai perceber que mesmo sem ver aquele alguém, você não está indo bem. Quando alguém é parte ainda que lhe faz forte, que lhe faz ser, não dá pra ir conforme a música, embora a voz do Renato seja tão doce e segura.
O livro inteiro é cheio de solidão, de saudade. Dá pra descobrir uma alegria que é cotidiana, um medo de cair, um medo de se perder, um medo de ter medo. Vai ter um Eduardo e uma Mônica que vão viajar, mas não um com o outro, um Faroeste Caboclo tão revoltado quanto os acordes da banda, algo que foi prometido e ninguém prometeu, um sol que bate na janela do quarto e rouba coragem, lembra alguma coisa que antes era linda. Nada mudou, mas alguma coisa aconteceu, um sorriso parece lhe ferir, um coração tá batendo à toa e isso dói.
Vinte autores brasileiros têm a liberdade para prosear as canções, usando aquela linguagem simples, quase clariciana, cuja intenção é descrever sensações humanas, naturalmente complexas, de modo compreensível e singelo. Encantam, porque conseguem expor sentimentos diversos de uma forma que se torna possível ao leitor partilhar o sentimento da personagem, ouvir a voz do Renato Russo rompendo o silêncio ao virar de páginas. Mas aí eu percebo que estou lendo sozinha e que o Renato, a bateria revoltada do Marcelo Bonfá e os acordes do Villa-Lobos são só imaginação e que é tão estranho os bons morrerem tão jovens, embora eu me apaixone por eles todo dia. É, leitor, somos solitários apaixonados por arte neste mundo cheio de confusão. Como se não houvesse o amanha é um refúgio no mundo que anda tão complicado, uma vontade de estar distante de tudo.

Por Julia Ciasca

Nenhum comentário:

Postar um comentário